sábado, 25 de dezembro de 2010

Comentário convidado - A Criança Roubada







Por Finisia Fideli

A Criança Roubada (The Stolen Child), Keith Donohue. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, 362 pgs. Capa de Jonathan Cape. Tradução de Cássio de Arantes Leite.


Na primeira frase do livro, o protagonista pede: "Não me chame de fada", e segue explicando que essa palavra adquiriu com o tempo inúmeros significados e que o correto é nomeá-lo de hobgoblin - ou changeling (do inglês "to change" = "trocar").
Os changelings sequestram uma criança humana e a substituem por um deles. A criança escolhida é rigorosamente acompanhada para que tudo a seu respeito e de sua família seja conhecido antes da troca. Não serve qualquer criança. É preciso que seja um tipo solitário, inapto à vida familiar, de alguma maneira rejeitada ou deixada de lado. Desse modo, o hobgoblin captura a criança e a substitui. Transforma seu corpo nos mínimos detalhes, a fim de enganar os pais e fazê-los acreditar que aquele changeling é de fato o filho deles.
A história começa com a captura e entrada de Henry Day no mundo das fadas, quando, aos sete anos de idade, ele decide fugir de sua casa na fazenda e adentrar na floresta que existe nas proximidades. Com os bolsos cheios de biscoitos, ele se esgueira dentro da mata sem que sua mãe perceba. É uma tarde quente de agosto, e Henry acaba se escondendo dentro do tronco oco de um enorme castanheiro. Ao entardecer, os adultos se aproximam de seu esconderijo com lanternas, procurando por ele, mas Henry está decidido a não ser encontrado.
Contudo, os changelings já o escolheram, e ele é arrancado do buraco, jogado no chão, amordaçado, despido, amarrado e carregado por crianças extraordinariamente fortes, em disparada pela floresta escura. A história de sua conversão é o início de uma fábula de sofrimento, ao mesmo tempo a imersão e o despertar de um sonho, de uma morte e de um renascimento.
Contando com ele, o grupo completa uma dúzia exata, seis garotos e cinco garotas quase nus, cobertos com roupas velhas e puídas; descalços, cabelos compridos e desgrenhados, belos rostos, olhos baços e vazios emoldurados por rugas finas. Anciãos em corpos de meninos selvagens, imobilizados no tempo, sem idade, eternos, rústicos como uma matilha de cães. Eles se apresentam: as meninas são Speck, Onions, Kivi, Blomma e Chavisory. Os garotos são Igel, o líder, Bécka, Ragno, Zanzara, Smaolach e Luchóg. Alguns agem como irmãos, outros como amantes, todos vivendo juntos na floresta.
Henry acaba sendo nomeado "Aniday" e aprende a arpoar rãs e peixes, distinguir cogumelos comestíveis dos venenosos e coletar água. No frio eles todos dormem juntos numa massa confusa sobre uma pilha de peles de animais. Os mais experientes fazem escursões à cidade para roubar agasalhos e sapatos para enfrentar o inverno rigoroso. Aniday é tratado como um bebezinho, enquanto se adapta, aos poucos, à fome quase permanente, ao desconforto, ao distanciamento de sua vida pregressa.
As fadas não são imortais, mas podem viver centenas de anos sem aparentar sinais de envelhecimento. Quando percebe que já não controla a passagem do tempo, Aniday decide escrever um diário.
Vivendo sua vida humana, Henry causa estranheza à sua família porque demora a crescer como um menino normal, tem estranhas mãos brancas e longuíneas, e vive cantarolando pela casa. Ele tem uma linda voz e demonstra talento musical. Levado a um professor de piano, acaba desenvolvendo suas habilidades, fazendo apresentações públicas, tentando mais e mais se integrar à sua família humana.
Aniday, por sua vez, mergulha na vida da floresta, ganha confiança do grupo e goza cada vez de mais liberdade em suas investidas na cidade. O que ele procura é papel para escrever o diário e livros da biblioteca local. Ele e sua melhor amiga, Speck, transforam o subsolo da biblioteca em um refúgio particular. Lá eles lêem e escrevem, tentando escapar um pouco das dificuldades da vida na floresta.
Acompanhamos a vida de ambos à procura de uma identidade que sempre lhes escapa. Henry nunca consegue esquecer sua vida antes das fadas, numa aldeia alemã; e Aniday jamais se afasta totalmente de seus pais e irmãs, e de um futuro que lhe foi usurpado.
O livro alterna capítulos na voz de Henry e Aniday. Nenhum deles encontra felicidade verdadeira, embora todas as chances estejam do lado de Henry. Mas nem a faculdade, o talento musical, o casamento e paternidade o satisfazem como indivíduo, e ele passa a desenvolver um medo quase paranóico em relação ao sequestro de seu próprio filho.
A vida de Aniday, por outro lado, é tão mais dura quanto o fato de ele não querer esquecer sua vida anterior, estando impedido, portanto, de pertencer totalmente ao mundo das fadas, onde ele enfrenta muito mais perdas do que acredita ser capaz de suportar.
Ambos só encontrarão paz quando alcançarem suas realizações. Henry através da música e Aniday com seu livro de memórias, que por fim conclui que as fadas já não representam problema para as crianças do mundo moderno, porque perigos muito mais reais estão à espreita.
O final acena com a procura de Aniday por um nome, um amor, uma esperança. Seu legado, um livro. Para lembrar de tudo.
O autor Keith Donohue é casado e pai de quatro filhos. Foi redator de discursos por oito anos e atualmente trabalha num órgão governamental ligado à preservação cultural dos Estados Unidos. Este é seu livro de estréia, traduzido em mais de vinte países. Escrito como uma fábula, uma fantasia contemporânea, uma original história de fadas cujo significado é a perda da identidade e a busca desesperada por um lugar no mundo que preencha o coração.


Primoroso e emocionante, o romance é uma obra de rara delicadeza, que ilumina e inspira, ao mesmo tempo que nos assombra em relação ao futuro de nossas crianças.






Esta resenha foi publicada originalmente na coluna do Terra Magazine, por Roberto Causo e foi escrita por Finisia Fideli. Foi postada aqui com autorização da autora. Para ler a resenha em seu contexto original, clique no link abaixo:






O conto "Exercícios de Silêncio", de Finisia Fideli, está na antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica (Devir, 2007)

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