terça-feira, 24 de junho de 2014

Um dia, seremos um




Eu não tinha ideia de onde estava me metendo, admito. Estava só passeando de boa pelo Netflix, pensando em algo de bom para assistir e lá estava aquela série de que tanto já ouvi falar. E olha, é estrelada pela incrível da Toni Collette. Gosto dela. Sei vagamente sobre o que a série fala, acho que vou dar uma chance. Dias depois terminei as três temporadas que existem e, obcecado, percebo que não tinha ideia, lá no início, da carga emocional e da comédia envolvida em United States of Tara.

Para quem não conhece, a série teve três temporadas de 2009 a 2011 contando a história de Tara (Toni Collette), uma boa mãe, boa esposa, boa irmã… ou quase. Ela consegue ser essas coisas quando ela realmente é Tara, mas acontece que esse nem sempre é o caso. Confuso? Tara tem TDI, ou seja, Transtorno Dissociativo de Identidade - também conhecido como Múltiplas Personalidades. Por isso, às vezes, a personalidade de Tara é substituída por um de seus alter-egos: Alice, a dona de casa dos anos 60 que adora cuidar da casa, cozinhar, e mimar e educar os filhos e o marido; Buck, um ex-veterano do Vietnã que adora sua moto, armas e cerveja; T, uma adolescente que adora fazer compras, beber e se drogar; e, mais ao final da primeira temporada, vemos Gimme, uma personalidade animalesca e assustadora. Na segunda temporada surgem ainda novos alters, sendo eles: a doutora Shoshana Shoenbaum, terapeuta especialista em TDI e meio hippie; e Chicken, uma versão de Tara aos cinco anos de idade. E, na terceira e última temporada, surge ainda um último alter: Bryce, personificando o meio irmão abusivo de Tara.

Aí você olha esse grupo de personalidades e pensa: “quem em sã consciência aguentaria uma pessoa que reveza tantas personalidades no dia a dia?”. E eu te respondo, caro leitor, a família Gregson. Tara sempre tem a seu lado a sua irritante e egocêntrica irmã Charmaine (Rosemarie DeWitt), seu amável e adorável (e mais do que compreensível, devo destacar) marido Max (o ótimo John Corbett), além dos filhos adolescentes Kate (Brie Larson) e Marshall (Keir Gilchrist). E não só Tara tem de lidar com seus constantes blecautes (que sempre ocorrem quando um alter assume, uma vez que não se lembra do que eles fazem), como tem que lidar com situações rotineiras como: a filha adolescente que namora e está transando com um estranho garoto gótico; ou com seu filho mais novo, com suas dúvidas e inseguranças com relação à própria sexualidade; ou com sua irmã, que, ao menos inicialmente, acredita que sua doença não passa de uma invenção para chamar atenção; ou com seu marido que tenta se defender dos avanços sexuais de seus alters; ou com seu trabalho como pintora de paineis para pessoas ricas.

A verdade é que Tara sucumbe à pressão, ao estresse e aos problemas saindo do ar e passando o volante para um de seus alters. Tudo isso para não ter de encarar uma memória traumática de sua infância/adolescência. Algo de que não consegue se lembrar, mas que destruiu e despedaçou sua mente e várias partes de si mesma, que agora lutam para tomar o controle.

Mas como o próprio Mashall diz em certo ponto da história, “essa não é uma história de terror ou sobre uma família disfuncional, essa é uma história de amor”. E é mesmo. Não é sobre como os pais de Tara sabiam do incidente traumático e o esconderam por toda a sua vida, não é sobre sua irmã egoísta e irritante, não é sobre a homossexualidade de seu filho, não é sobre a estranha fascinação de sua filha por uma personagem de RPG que se chama Princesa Valhalla Hawkwind, nem mesmo é sobre suas múltimas personalidades. Não, não é sobre nada disso, embora tais aspectos façam parte do universo de Tara tanto quanto seus alters. United States of Tara é uma história sobre amor, dedicação, comprometimento e família. E embora nem sempre seja fácil, é incrível ver como Max lida com cada alter da esposa e, principalmente, é incrível ver como ele lida com ela.

“Queria que fôssemos nós nos casando hoje. Eu ficaria em frente de todas essas pessoas e diria: eu amo essa mulher! Depois olharia nos seus olhos e diria: se você é Tara, serei Max. Mas se for Gimme, serei Gotcha. E se for o Buck, serei sua moto. Se for a Alice, serei seu astronauta. E eu carregaria a Chicken para o carro, mesmo sabendo que ela estava fingindo dormir.” - Max Gregson.

E ainda que de início se pareça com uma comédia familiar (e leve esse espírito até o fim), nota-se com o passar dos episódios todo o drama que cerca o distúrbio da protagonista. Podemos acompanhar enquanto a situação se deteriora, enquanto seus filhos tentam não se ressentir (algumas vezes sem sucesso) dos conflitos e confusões que a mãe causa, enquanto a própria Tara se desespera por simplesmente não ter controle algum sobre si mesma e as situações em que se envolve.

Não resta dúvidas, ao fim, de que United States of Tara é uma série construída por bons personagens, bons diálogos, um elenco afiadíssimo e um bom roteiro. A relação de Kate com seu irmão (o adorável apelido de Moosh ficará vivo para sempre), ou como ela está sempre buscando o que fazer com sua vida (qual adolescente não se identificou?), ou como Chamaine se apaixona por Neil (o divertidíssimo Patton Oswalt), ou sobre as tentativas de Marsh de entender sua própria sexualidade, a luta de Tara para descobrir qual o trauma que lhe causou a dissociação e a eterna briga de Max, sempre insistindo em defender sua esposa, às vezes contra si mesmo.

E, embora a série tenha sido cancelada ao final da terceira temporada, com o fim é inevitável se entender e perceber que todos nós nos dividimos um pouco. Essa é uma lição que ficou, ao menos para mim. Talvez não de forma dramática como a protagonista, mas ainda assim fica claro que todos usamos máscaras que personificam partes de nós mesmos. Somos pessoas diferentes o tempo todo: uma pessoa com nossos pais, outra com nossos amigos, outra com nossos irmãos, outra com nossos filhos, outra com nossos cães e/ou gatos, outra com nossos cônjuges. E, sim, é verdade que na vida de Tara a comédia e o drama andam de mãos dadas, mas tudo o que ela quer é voltar a ser uma. Tara e somente ela. E, se tivermos sorte, quem sabe um dia todos nós não tenhamos o mesmo objetivo.

"United States of Tara". Ano: 2009 - 2011. Nacionalidade: EUA. Diretor: Craig Zisk, Craig Gillespie, Jamie Babbit e Tricia Brock. Roteiro de: Diablo Cody. Produzido por: Diablo Cody, Justin Falvey, Darryl Frank, Dan Kaplow e Steven Spielberg. Estrelando: Toni Collette, John Corbett, Rosemarie DeWitt, Keir Gilchrist, Brie Larson e Patton Oswalt. Música de: Craig Wedren. Duração: 36 eps. Resenha escrita por: Guilherme R. Aleixo. Nota: 9/10.



terça-feira, 3 de junho de 2014

Voltando. E em boa companhia.



Tocante, sensível e leve são alguns dos adjetivos que foram usados incansavelmente para esse filme. E ele é tudo isso, sim, mas mesmo assim quando fui ao cinema na estreia, admito que não sabia bem o que esperar deste longa-metragem. Isso porque sou fã do roteiro, do diretor e dos atores desde que descobri a história como um curta metragem no Youtube (lá no longínquo ano de 2012). Você pode conferir a resenha que fiz sobre este curta, que já tem mais de 3 milhões de visualizações, aqui. Bom, o curta metragem tem 17 minutos e ganhou 23 prêmios internacionais e 39 nacionais na época de seu lançamento (você pode conferir a lista completa no site do IMDB, aqui).

O longa-metragem Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (idem, BRA, 2014) estreou primeiro no Festival Internacional de Cinema de Berlim, ganhando o prêmio da FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema) como melhor filme da mostra, além do prêmio Teddy Bear - dado a produções com temática gay. E, semanas antes de estrear em território tupiniquim, surpreendeu novamente ao ganhar um prêmio dado pelo público durante o Festival de Cinema de Guadalajara, no México. Aí, ao chegar ao Brasil, atraiu em duas semanas cerca de 87.000 espectadores por meio de suas 33 salas em 18 cidades do país. Duas semanas depois esse número já havia subido para 54 salas em 32 cidades (números e dados publicados pela Revista Piauí). Em outras palavras, um sucesso estrondoso para um filme pequeno e independente que disputava a atenção com grandes blockbusters nacionais e internacionais. Depois de estrear no Brasil, continuou sendo levado a festivais e mostras internacionais e acabou ganhando ainda mais prêmios no TGLFF (Torino Gay and Lesbian Film Festival).

Para quem não conhece a história do longa, ele é uma releitura do curta-metragem de 2010 (chamado Eu Não Quero Voltar Sozinho) e conta a história do adolescente Leonardo (Ghilherme Lobo) que é cego e, por ser deficiente visual, é superprotegido pelos pais, em especial pela mãe Laura (Lúcia Romano). Por isso o garoto, tentando fugir das amarras da superproteção que encontra por todos os lados, incluindo por parte de sua melhor amiga Giovana (Tess Amorim), se interessa por fazer uma viagem de intercâmbio, na esperança de que essa distância lhe proporcione a independência que não só ele, mas todo jovem procura. Mas os planos de Léo mudam quando conhece Gabriel (Fabio Audi), um estudante novo com quem acaba criando uma forte amizade e, talvez, algo mais.

Creio que a palavra que define o longa-metragem dirigido por Daniel Ribeiro é “sensível” mesmo. A sensibilidade é notável e paupável durante a 1h30 de duração do filme. A forma como os personagens que conhecemos no curta-metragem, em 2010, retornam, mais velhos e profundos é digna de nota. E vale ressaltar, é claro, a construção de todo um universo jovem que em muito me lembrou a minha adolescência. Há a provocação com o diferente, os garotos idiotas que ultrapassam os limites com suas brincadeiras, a irritação com atitudes dos pais, a preguiça eterna que todo adolescente conhece tão bem, a procrastinação na hora dos trabalhos, as dúvidas e inseguranças que todos jovem têm de enfrentar, a descoberta sexual, o medo de não ser correspondido quando há sentimentos por aquela pessoa especial. O universo de Léo, Gabriel e Giovana criado pelo diretor é um espetáculo de profundidade e dúvidas típicas da juventude. Portanto não surpreende quando a identificação do espectador é massiva: isso é porque todos nós nos lembramos de passar por isso, passamos agora ou um dia teremos de passar. A fidelidade com que esse retrato é construído e moldado impressiona e imerge aqueles na sala de cinema no mundo de Léo, e ficamos bestificados com a pureza mostrada lá.

Um dos principais pontos desse universo ‘fictício’ é a inocência e a simplicidade, pois ao mesmo tempo em que nossos protagonistas são adolescentes comuns e podemos acompanhá-los lidando com as frustrações comuns geradas pela idade e pelas relações que têm entre si, vemos também um lado pouco mostrado - o da acessibilidade e das necessidades dos deficientes visuais. Ao menos para mim, o roteiro serviu como um despertar para questões que sempre encarei como simples, como por exemplo: como se explica um eclipse a alguém que não enxerga (e nunca enxergou) ou mesmo que nunca viu luz? Ou então como funciona o ato de se apaixonar para alguém que não pode ver a aparência da outra pessoa (quero dizer, como saber se há um interesse naquela pessoa que você não conhece se não se pode vê-la)? São questionamentos tão simples e ao mesmo tempo tão complexos para nós que nos baseamos tão fortemente no nosso poder de observar e olhar, que ao sermos expostos a isso na sala escura do cinema, ficamos desnorteados e pensativos. Eu sei que eu fiquei.

É muito interessante portanto observar como Léo usa seus outros sentidos para conhecer Gabriel quando logo se aproximam e surge o interesse de um pelo outro. Exemplifico com a cena em que Gabriel chega pela primeira vez à sala de aula e fala com a professora. A primeira fala do garoto é acompanhada pelos espectadores de um ponto recuado no rosto de Léo. Então encaramos sua orelha quando não só ele como também nós, os espectadores, ouvimos a voz do aluno novo pela primeira vez (um toque genial, sem dúvidas). Seguem-se menções honrosas também para a cena em que Léo cheira o moletom que o amigo esqueceu ou quando pela primeira vez Gabriel ajuda a guiá-lo pela rua. É sutil e ao mesmo tempo lírico acompanhar enquanto os sentimentos que Léo nutre pelo novo amigo crescem e se tornem algo mais. É lindo de ver. Apaixonante de assistir.

Minha obsessão com o filme à parte, palmas para todo o elenco que está afiadíssimo. Verdade seja dita, na cena inicial achei a relação entre Léo e Gi um pouco estranha - quase como se não fossem amigos de infância conversando lado a lado, mas passado os primeiros cinco minutos me esqueci totalmente dessa percepção. Ghilherme Lobo brilha como Leonardo e é difícil acreditar que na verdade ele enxerga, tamanho é o convencimento que passa; Fabio Audi está incrível como Gabriel, mostrando uma doçura interiorana tão adorável que dá vontade de que a personagem exista de verdade; Tess Amorim impressiona com sua personificação da amiga de infância que tem sentimentos mais fortes pelo melhor amigo, e sua esperança sendo destroçada tão claramente em seu rosto na cena em que Léo conta que está apaixonado me fizeram engolir algumas lágrimas de dor solidária; Selma Egrei é a avó de Léo, dona Maria, e está incrível com sua confiança e paixão pelo neto, é uma delícia de ver; e, por fim, Eucir de Souza (Carlos, o pai de Léo) e Lúcia Romano (Laura, a mãe superprotetora) são as encarnações de seus papéis como os pais de um adolescente que, do ponto de vista deles, precisa ser protegido de um mundo que não sabe lidar com ele.

A trilha sonora é outra que merece prêmios e prêmios, pois é incrivelmente bem escolhida (eu particularmente fiquei com essa música na cabeça por semanas) com direito a Cícero, Belle and Sebastian, Marcelo Camelo entre muitas outras. E como vocês devem ter percebido pelo texto gigantesco e pelo excesso de detalhes, me apaixonei por esse longa. É daqueles que você pode assistir uma, duas, três ou quatro vezes e continua uma graça de filme. E não posso deixar de dizer que se você for com amigos ou parentes ou qualquer um que não seja seu rola/namorado(a)/cônjuge, ao sair do cinema você se sentirá só e necessitando de um abraço daquela pessoa especial. Isso porque Hoje Eu Quero Voltar Sozinho não é um filme gay (esse é apenas um detalhe), e sim um filme sobre a adolescência e a descoberta do amor entre dois jovens. O resto são enfeites. Mas que dá uma vontade de assistir bem acompanhado, isso dá.

"Hoje Eu Quero Voltar Sozinho". Título original: "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho". Ano: 2014. Nacionalidade: BRA. Diretor: Daniel Ribeiro. Roteiro de: Daniel Ribeiro. Produzido por: Diana Almeida, Daniel Ribeiro e Renato Rondon. Estrelando: Ghilherme Lobo, Fabio Audi, Tess Amorim, Isabela Guasco, Selma Egrei, Eucir de Souza e Lúcia Romano. Duração: 95 min . Resenha escrita por: Guilherme R. Aleixo. Nota: 9,5/10.