sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Shantih, Shantih, Shantih*












Filhos da Esperança, do diretor Alfonso Cuarón, é uma das obras de ficção científica mais belas e realistas dos últimos anos.




"Thesse fragments I have shored against my ruins
Why then Ile fit you. Hieronymo's mad againe.
Datta. Dayadhvam. Damyata.

Shantih, Shantih, Shantih".

- T.S. Elliot - The Wasted Lands (As Terras Devastadas)




O dia 16 de Novembro de 2027 marcou a morte de Diego Ricardo, de 18 anos de idade, a pessoa mais jovem do planeta. Em Filhos da Esperança (Children of Men, EUA/ING, 2006), nenhuma criança nasceu nos últimos dezoito anos. Por algum motivo desconhecido, as mulheres tornaram-se inférteis. Sem o riso das crianças para guiar os adultos, as fundações da sociedade desmoronaram.
O mundo entrou em guerra. Bombas nucleares foram despejadas em cidades americanas e na África. A Inglaterra (onde o filme se passa) tornou-se um estado quase ditatorial, constantemente atormentado por atentados terroristas e onde os imigrantes ilegais (qualquer um que não seja britânico) são caçados como judeus recém-escapados de campos de concentração (onde são enviados caso sejam capturados).
Em meio a esse caos, Theo Faron (interpretado por Clive Owen), cujo nome em grego significa "O Deus dos Faróis", é contactado por sua esposa, Julian (Juliane Moore), que precisa de sua ajuda para levar uma garota clandestina chamada Kee, ao litoral. O que ele não sabe é que a garota, inexplicavelmente, está grávida, e precisa encontrar um barco chamado "O Amanhã", onde o "Projeto Humano" - uma organização secreta, não governamental - procura descobrir as causas da infertilidade.
Vagamente baseado na obra da escritora de romances policiais, P.D. James, o filme é dirigido por Alfonso Cuarón, o mesmo de
E Sua Mãe Também, e Harry Potter e o Prisioneiro de Askaban. Contudo, na obra original, a infertilidade é atribuída aos homens, incapazes de produzir esperma, e não às mulheres como no filme.
Outra característica que os difere é a narrativa mais introspectiva do romance, aprofundando-se na sociedade britânica pós-apocalíptica que é apresentada como plano de fundo no filme de Cuarón. Equanto o livro possui uma narrativa guiada pelos personagens, a do filme é guiada pelos acontecimentos.
A composição do universo de
Filhos da Esperança é assombrosamente detalhada. Cada rua, muro ou corredor é caracterizado de forma a demonstrar a decadência da sociedade mundial. A figura do quadro Guernica de Picasso, é uma constante no filme, representando o caos e a desordem que se instaurou no planeta graças à infertilidade. Pequenos detalhes como um balão gigante em forma de porco, referência ao álbum Animals, do grupo Pink Floyd, que completaria 50 anos em 2027, a presença de um animal em quase todas as cenas, normalmente um cão, as manchetes dos jornais e grafites nas paredes, ajudam a situar o espectador num futuro marcado pela falta de eseprança, de uma forma extremamente realista.
A fotografia do grande colaborador de Cuarón, Emmanuel Lubeski, feita totalmente em câmeras de mão, é uma das melhores na história recente. A priorização de longas tomadas única, também é evidente, com o uso extensivo de planos-sequência (a última sequência do filme possui mais de seis minutos sem cortes). Cuarón afirmou publicamente ter se inspirado no filme italiano,
A Batalha de Argel, de 1966, para narrar o filme quase como um documentário sobre os acontecimentos ocorridos em 2027.
A trilha sonora
Fragments of a Prayer de John Tavener é quase uma ópera, uma viagem espiritual que se aprofunda no coração de cada um dos personagens.
Com a ajuda de seu amigo, Jasper (Michael Cane) Theo se verá numa empreitada para levar Kee até o litoral, no que pode significar a última esperança da humanidade. Em sua jornada, haverá violência, haverá tristeza, e nem todos chegarão até o final, enquanto a pequena chama do coração dos homens tentará permanecer acesa.
As atuações são excelentes, a direção, fenomenal, a fotografia e direção de arte capazes de mergulhar o espectador na decadente Inglaterra infértil do futuro e o roteiro, tenso, repleto de detalhes e significados que manterão o espectador preso até o fim.
É um filme extraordináriamente realista (embora seja plausível acreditar que a medicina genética seria capaz de consertar os problemas da infertilidade), ora tenso, ora poético. Um conto de como os laços que unem a sociedade são fracos e podem ser partidos, e o que acontece quando são. A última jornada do homem pelas terras devastadas, na derradeira luta pela sobrevivência.



*Shantih Shantih Shantih faz parte do poema "As Terras Devastadas" de T.S. Elliot, e em tradução vafa, significa "A paz que passa compreensão".

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